Estou postando dois novos capítulos de "Borboletas" para compensar o que não postei na quarta. 
Fiquei presa com revisões intermináveis. 
Espero que gostem. Comentem se vocês estão gostando e para onde pensam que a história está indo. 
Desde já agradeço a todos. Bjo!




Capítulo 5
"Deus, para a felicidade do homem, inventou a fé e o amor. O Diabo, invejoso, fez o homem confundir fé com religião e amor com casamento." 
Machado de Assis

Lúcia estava deitada no sofá apreciando as rachaduras no teto. O caderno sobre a barriga. Nem tinha se dado ao trabalho de ligar o computador. Na sua vida de escritora nunca tinha dado de cara com o famigerado bloqueio. Nunca tinha ficado paralisada diante da página em branco como agora.
Já tivera muitos problemas com suas revisões perpétuas. O texto nunca estava bom o suficiente. Cada palavra era pensada e repensada. Era uma loucura.
Não que a atenção aos detalhes não seja importante, mas perfeccionismo pode ser paralisante. Ficava polindo o material por dias e meses e nunca chegava ao produto final.
Felizmente tomou a decisão de acabar com aquilo e encarou a fase seguinte: publicar. É claro que isso também se mostrou um processo longo e doloroso.
Nada disso se comparava com a estagnação que enfrentava agora. Seu cérebro está limpo de qualquer ideia. Tentara todos os truques habituais, mas as palavras estavam saindo de lado, tortas feito os galhos de uma árvore velha.
Sua meditação foi interrompida por uma mensagem de Sérgio. Queria sair pra comemorar um negócio importante que havia fechado. Dizia que estava com saudades.
Ia começar tudo de novo. Estava sumido depois da última discussão que tiveram. Talvez devesse fingir que não viu a mensagem. Largar o celular. Se sente mal com isso. Resolve responder.
Escreve e apaga umas cinco vezes a frase. Pensa. Não quer ser rude, mas também não quer dar esperanças falsas. Nem pra ele nem pra si mesma. Por que não conseguia dizer simplesmente que não queria sair com ele?
Tiveram um diálogo maçante. Ela deu mil desculpas sobre estar ocupada que ele ignorou.
No final, ele interrompeu a troca de mensagens para atender um telefonema de um cliente e disse que ligava à noite. Provavelmente nem leu direito as mensagens dela.
Sérgio não mudara nada. De vez em quando tentava outra vez. Ligava sempre com as mesmas conversas. Marcava em um novo local da moda. Começava a falar de si mesmo e de como sua vida estava ótima, sucesso nos negócios, carro novo. Tentando impressionar.
Nunca conseguiu falar de sentimentos. Só falava de coisas. Sempre trazia presentes ao invés de pedir desculpas. Ela falava demais, complicava demais. Chorava demais. Você está exagerando era a frase preferida dele.
Quando estavam juntos eram como dois inimigos, fazendo um grande esforço para infernizar o outro, apontando cada defeito, cada pequena falha.
Por que não puderam utilizar toda aquela energia para criar uma convivência feliz?
Ficaram juntos por cinco anos. Dois morando juntos. De inteligente e charmoso, Sérgio tinha passado a amargo e rabugento. Qualquer coisa o tornava um babaca: o chuveiro que não esquentava, o elevador quebrado, o carro que não ligava. E tudo parecia ser sempre culpa dela.
Lúcia se sentou e esfregou o rosto com as mãos. Precisava trabalhar. Reiniciar esse dia ruim.
Já não era nenhuma iniciante. A ideia inicial do livro já estava esboçada. Era uma ideia boa e, mais fantástico de tudo, a publicação garantida. Talvez fosse esse o problema. Seu cérebro estava cheio de ansiedade.
Talvez precisasse folhear um livro de referência. Ou quatro. Levantou e pegou um volume sobre cenas de que tinha gostado muito. Queria começar seu livro no meio da ação, mostrando um crime do ponto de vista da vítima. Isso criaria um impacto nos leitores.
Pesquisa. Talvez eu precise fazer uma garimpagem na Internet. A vida real está cheia de ótimos livros que ainda não foram escritos.
Abriu o laptop e começou a pesquisar aleatoriamente. O problema com a internet é que você senta para procurar algo, então alguma coisa chama sua atenção e você não consegue se impedir de clicar. Uma página leva a outra, depois outra. Quando vê passou uma hora e nem se lembra mais o que procurava no início.
Foi assim que Lúcia chegou naquela matéria sobre um jovem que tinha morrido uma semana atrás.
O nome tinha chamado sua atenção. Maurício Nunes. Jovem escritor e influenciador digital. Havia lido seu trabalho de estréia.
Maurício tinha ficado bem conhecido nas mídias digitais e possuía um grupo de fãs bem grande nas redes. O livro era bom, mas muita gente andava dizendo que parte do sucesso estava na sua personalidade e nas suas estratégias de divulgação.
A matéria não dizia como morreu. Começou a pesquisar. Nada sobre a causa da morte. Que estranho? Várias homenagens de colegas e fãs, mas nem uma linha sobre o que aconteceu.
Seu perfil no Facebook permanecia ativo como memorial. Que coisa mais sinistra. Um triste epitáfio virtual. Hoje nem se perde tempo levando flores a uma lápide.
Passou um bom tempo vasculhando redes sociais e mandando mensagens tentando saber de alguma coisa. Algumas pessoas nem sabiam que ele tinha morrido.
Lúcia pegou o telefone e procurou o número de Martha que era seu contato na editora. Se conheciam há pouco tempo, mas tinham se dado bem de cara. Martha era uma pessoa muito legal. Ela atendeu no primeiro toque.
"Oi, Lúcia! Estava pensando em você. Como está indo o livro?"
"Muito bem". Para não ser pega nessa mentira resolveu mudar rápido de assunto. "Não foi por isso que liguei. Você soube do que aconteceu com o Maurício Nunes?" Pegou uma caneta e começou a rabiscar em um panfleto de entrega de comida japonesa que estava jogado na mesa.
"Claro! Coisa mais triste o que aconteceu, tinha muito talento. Não o conhecia pessoalmente, mas o seguia no Twitter. Inteligente, irônico, fazia muito sucesso com a geração mais jovem."
"Então você sabe como ele morreu."
"Na verdade não, só vi os comentários sobre isso, mas não tinha os detalhes. Por que você quer saber?"
"Só curiosidade mesmo. Nenhuma matéria falava a causa da morte. Você não acha estranho?"
"Não pensei sobre isso, pra falar a verdade. Sempre fica interessada na causa da morte das pessoas? É meio estranho, sabe?"
"Claro que não, que horror! Foi só uma curiosidade, só isso."
"Certo, entendi, todo mundo tem suas esquisitices. Olha Lúcia, adoraria conversar mais, só que tenho uma reunião em dez minutos, preciso separar umas coisas."
Depois de Martha passar algumas recomendações práticas sobre o livro, elas se despediram e Lúcia ficou olhando fixamente as figuras geométricas que desenhara por todo folheto.
Parecia cada vez mais estranho que ninguém soubesse se havia sido um assalto que não deu certo, um crime passional ou simples morte por causas naturais. Será que era a única que estava estranhando isso? Por que não conseguia saber de nadinha?
Uma nova mensagem a tirou de seus devaneios. Beto reclamando que estava sumida e perguntando se não estaria afim de dar uma saída da sua toca.
Se Lúcia tinha um amigo de verdade, esse era Roberto. Sempre a fazia rir. Só de ler sua mensagem, um sorriso tomou conta de seu rosto. Onde será que ele acha esses emojis?
A maioria das pessoas com quem ela se relacionava era ligada ao trabalho, ou pior, amigos de Sérgio que mantiveram contato com ela após a separação.
Acreditara por muito tempo, como quase todas as pessoas, que policial era sinônimo de corrupto e violento. Depois de conhecer Roberto se dera conta de que eram apenas seres humanos normais tentando fazer uma droga de trabalho.
Claro que muitos cruzavam a linha, se tornando tão maus quanto os criminosos que combatiam. Outros estavam na profissão pela simples incapacidade de conseguir algo melhor. Alguns eram apenas sádicos.
Nada disso se aplicava ao seu amigo que era em essência uma boa pessoa e sempre sonhara em ser policial para poder ajudar os outros. Estava seguindo os passos do pai de quem tinha muito orgulho.
Os dois se conheceram em um cursinho preparatório quando ela estava tentando seguir o conselho de todo mundo e arranjar algo estável. Beto tinha passado na prova para a polícia e Lúcia, apesar de desistir do ramo dos concursos públicos, tinha ganho um amigo para a vida toda.
Que tal aquele bar onde foi o aniversário da Tati? :)
Depois de hesitar um pouco mandou uma mensagem aceitando o convite. Com a sua cabeça como estava, o livro não ia a parte alguma mesmo.
***
Capítulo 6
"Aquele que luta com monstros deve acautelar-se para não tornar-se também um monstro. Quando se olha muito tempo para um abismo, o abismo olha para você."
Friedrich Nietzsche - Para Além do Bem e do Mal.

Estava deitado na banheira. Na borda uma taça de vinho, no chão a garrafa vazia. A água havia esfriado. O som do cravo enchia o cômodo. As variações de Goldberg tinham se misturado aos seus pensamentos, tornando-os mais harmônicos.
Mania ridícula de colocar o pé no guarda corpo da varanda. Foi tão simples extirpar aquela farsa estúpida de escritor da face da terra.
Sentira uma vertigem na hora. Algo brilhando na vanguarda de sua mente. Só de lembrar ficava exultante. Havia ficado extasiado por dias.
Tudo acontecera muito rápido. A sensação de perceber que você tem a chance de fazer algo repreensível sem ninguém testemunhar. Sabe que vai se safar. Algumas pessoas aproveitam esses momentos para ferir seus filhos, explorar funcionários, chutar cães ou outras crueldades. Aproveitara a oportunidade para matar.
Deveria sentir remorso? Tudo em que podia pensar era que nunca seria pego. Ninguém o vira entrar ou sair do prédio. Ninguém os vira juntos. Todo seu contato com ele tinha sido deletado.
Outra chance dessas não se apresentaria nunca, mas ele poderia fazer a sua própria sorte. Seria fácil fazer isso. A arrogância dos supostos artistas os tornava vulneráveis. Podia usar a vaidade como isca.
Ninguém se surpreendeu ou se preocupou muito com a morte de Maurício. Nunca podemos saber do que as pessoas realmente são capazes. Como se pode prever um suicida?
Suicidas são pessoas fracas que querem pegar o caminho mais fácil. Fechou os olhos e se imaginou saltando da varanda, cortando os pulsos ou se afogando na banheira depois de se encher de remédios. Abriu os olhos e sorriu, pois sabia que nunca faria nada disso.
Por que precisaria parar? Por sorte não colocara todas as suas fichas num único número. Saiu da banheira, pegou uma toalha e foi procurar seu caderno de informações. Amélia Ribeiro. A criatura irritante, carente e repulsiva que o importunara com seu livro. Tinham mantido contato nas últimas semanas.
Odiava essa mulher. Nunca a encontrara pessoalmente, não a conhecia, mas a abominava. Retratava tudo que ele detestava e que nela se espalhava por todo corpo.
Ficou ali planejando o ato inimaginável, cortejando a ideia, alimentando-a e vendo-a crescer. Olhou para suas mãos e imaginou tudo de que seriam capazes.
Claro que matar pessoas é contra a lei, mas o que isso importa? Você também não deve interromper as pessoas quando estão falando, cortá-las no trânsito, dirigir bêbado ou aporrinha-las nas redes sociais. É tudo a mesma coisa.
Na verdade, tudo é definido pela maioria, mas era justo que essa enorme massa de boçais, com seus controles remoto e reality shows, ditassem seus padrões de comportamento?
Tirar a vida de alguém pela ideia vaga de pátria ou honra pode ser considerado moralmente válido. Aquele que mata muitos é condecorado, mas aquele que elimina um obstáculo da sua vida é um monstro.
A sociedade se horroriza diante do espelho. Sua cólera se dirige àqueles que descortinam a verdade nua e crua: não existe arrependimento ou culpa, e sim medo de uma punição. Real ou imaginária. Se pudessem se safar não pensariam duas vezes.
Em escala cósmica, se não existem deuses, então não seria punido. Se existem, não se importam com o sofrimento da humanidade, e poderia fazer o que quisesse. Há muito tempo que tinha deixado de lado o bem e o mal, colocando-se acima de todo o resto.
A natureza conhece apenas a lei do mais forte e do mais esperto. O lobo não se envergonha de devorar o cordeiro, pois essa é a sua natureza. Por que ele se envergonharia?
***
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